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Integração espacial de casas urbanas e suburbanas luso-brasileiras dos séculos XVIII e XIX
Eduarda Toscano de Carvalho[^1]
Pedro P. Palazzo[^2]
Programa de Iniciação Científica 2021–2022
biblio.yaml
Figura

Introdução

A história da morada urbana luso-brasileira tem, atualmente, uma narrativa consolidada a partir de décadas de estudos generalistas, desde os primeiros ensaios interpretativos por Gilberto Freyre [-@freyre:1951sobrados] até as sínteses canônicas por Carlos Lemos [-@lemos:1996historia] e Nestor Goulart [-@reis:1969lote] no terceiro quartel do século XX. Esta narrativa toma como ponto de partida a correspondência direta entre o sistema escravista e a configuração espacial da casa corrente urbana, tida como dependente da servidão doméstica para os mínimos confortos [@reis:1983quadro, p. 29]. Mais ainda, o contraste ao longo do século XIX entre a renovação estética das fachadas sob o classicismo imperial [nomenclatura proposta por @sousa:1994arquitetura, p. 25] e a persistência de distribuições tradicionais evidencia, segundo Mário Maestri [-@maestri:2001sobrado, p. 56], a persistência e relativa uniformidade do modelo escravista brasileiro.

Pesquisas mais especializadas têm relativizado esse panorama de uniformidade e especificidade da morada urbana de dois modos: primeiro, mostrando semelhanças morfológicas entre a casa corrente urbana e a morada rural ao longo do século XIX, como na documentação realizada por Neide Marins [-@martins:1978partido] no interior de São Paulo; segundo, chamando atenção para a tipologia da morada senhorial, objeto de aprofundados estudos neste século por grupos de pesquisa luso-brasileiros [@malta:2013casas].

Na esteira de tais pesquisas, este artigo analisa comparativamente a morfologia da morada urbana luso-brasileira nos séculos XVIII e XIX, confrontando as configurações de casas correntes e moradas senhoriais. Os gráficos de profundidade visual gerados pelo programa DepthmapX [@gil:2015space10] sobre plantas de casas evidenciam duas séries tipológicas distintas que confirmam a diferença morfológica essencial entre as casas correntes e as senhoriais. Essa diferença reflete um matiz mais complexo de relações entre privacidade e publicidade da vida social entre as elites do Brasil escravista.

Contexto da edilícia de base luso-brasileira

Tipologia de casas correntes

A série tipológica de casas correntes luso-brasileiras segue os princípios descritos por Caniggia [-@caniggia:1997metodologia] para a edilícia de base de matriz mediterrânea: a derivação diacrônica a partir da célula singular, de pequenas dimensões (3,5 a 5,5 metros de vão estrutural), e a precedência dos tipos rurais sobre a formação de tipos urbanos. Este processo resulta na série tipológica das chamadas "moradas de casas", predominante no sul de Portugal [@costa:2015moradas].

No entanto, a tipologia de origem portuguesa diverge da matriz mediterrânea ao prescindir do pátio enquanto elemento estruturante da composição arquitetônica [@caniggia:1997analisi]. As tradições edilícias em Portugal se organizam, então, por meio de diversas estratégias compositivas que geram diferentes tipologias regionais. Estas partem desde bases extremamente elementares que não permitem a regressão a um tipo historicamente atestado, e de resto respondem a condicionantes climáticas e geológicas intrinsecamente diversas [@moutinho:1995arquitectura, p. 12-22]. A identificação dessa diversidade, em detrimento do mito de uma "casa portuguesa" singular e originária, se deve em grande parte ao Inquérito realizado pelo Sindicato dos Arquitectos [@arquitectura:1961]. Este inquérito foi o marco inicial do estudo sistemático da edilícia de base de origem portuguesa [@mestre:2016mito].

Descrever as linhagens tipológicas da morada portuguesa é ainda mais desafiador uma vez que a habitação urbana, desde finais da Idade Média, converge com os tipos de casas correntes universalmente difundidos na Europa ocidental, com corredor longitudinal e alcovas [@trindade:2002casa]. Esses tipos foram documentados por Sebastiano Serlio [-@serlio:1547sesto] no seu Sexto Livro de Arquitetura, Delle habitationi fuori e dentro della città ([@fig:serlio-corrente]). Mesmo assim, a tipologia das casas correntes urbanas ao menos oferece certa homogeneidade morfológica dentro de uma gama de variantes sincrônicas que se estabilizam entre o final da Idade Média e finais do século XIX.

Sebastiano Serlio, variantes sincrônicas de casas correntes europeias (habitações de todas as classes de homens dentro da cidade n.º 45), do Sesto libro d'architettura, 1547–1551{#fig:serlio-corrente}

Tipologia de solares

Sebastiano Serlio, variante urbana de casa solarenga (casa do rico burguês ou mercador n.º 7), do Sesto libro d'architettura, 1547–1551{#fig:serlio-nobre}

Ao mesmo tempo que se consolida a tipologia das casas correntes urbanas, vê-se a formação de outra série tipológica, esta de origem rural: os solares e casas senhoriais. Ao contrário das moradas de casas que dão origem às casas correntes urbanas, formadas essencialmente por células de pequenas dimensões, a tipologia solarenga se estrutura em torno de um ou mais salões de grandes dimensões, eventualmente associados a pátios. Uma de muitas variantes pan-europeias dessa tipologia é também ilustrada por Serlio ([@fig:serlio-nobre]). Ambas séries tipológicas, bem como alguns remanescentes das moradas de casas mais simples, constituem o universo da habitação urbana produzida durante e após a colonização da América portuguesa.

Ao contrário das casas correntes, onde as restrições do lote urbano impõem uma distribuição longitudinal, as casas senhoriais ou solares apresentam distribuições centralizadas, quando não são dominadas por enfiadas transversais. Neste caso, sua volumetria tem reduzida profundidade, às vezes com apenas um conjunto de salas sobre a fachada e outro sobre a elevação posterior. Este é o protótipo da casa nobre ibérica: um solar rural que, por derivação social, também é atestado na habitação urbana da aristocracia durante a Idade Moderna [@neves:2013duas].

Casa brasileira

A tipologia da habitação de origem portuguesa no Brasil não forma uma árvore genealógica autônoma a partir de um tipo matriz comum, mas mais bem uma teia na qual se entrecruzam, desde o início da colonização, várias tradições regionais já amadurecidas em Portugal continental e hibridizadas nas ilhas atlânticas [@weimer:2005arquitetura]. Essa teia desenvolve, por sua vez, já no território da América portuguesa, ulteriores diferenciações e sínteses regionais e contextuais, alimentadas tanto por dinâmicas internas à cultura edilícia colonial quanto por injeções periódicas e localizadas de contingentes de artífices e usuários recém-chegados da península Ibérica e dos Açores. Certo é, nesse panorama, que a formação do habitat vernáculo luso-brasileiro não tem a forma nem do caldeirão unitário e homogeneizado proposto pela mitologia do Estado Novo, nem, inversamente, de uma constelação de tradições que se movessem sempre no sentido de uma maior diferenciação regional.

Assim, a história da morada luso-brasileira se caracteriza por duas negativas fundamentais já postuladas por Marina Waisman para o conjunto da arquitetura latinoamericana: por um lado, a impossibilidade de se estabelecer uma periodização consistente baseada em critérios formais [@waisman:1993interior, 49] e, por outro, a inexistência de processos tipológicos formando simples genealogias processuais [-@waisman:1993interior, 86]. Na ausência desses marcadores de uma convencional história linear, a edilícia de base no Brasil pode ser definida por uma nuvem de características predominantes. Estas são em grande medida herdadas de variadas matrizes portuguesas [@reis:1983quadro, 32], desdobradas e recombinadas ao sabor das possibilidades e necessidades de diferentes contextos urbanos ou rurais, classes sociais, recursos e saberes disponíveis. Algumas dessas características dentre as mais frequentemente mencionadas na literatura são:

  1. Setorização espacial derivada do propósito social da domus ou morada arquetípica formulado por C. William Westfall [@younes:2022architectural], qual seja, a distinção entre uma zona mais acessível à frente e uma zona mais reclusa aos fundos da casa. Na casa brasileira, como sintetiza Carlos Lemos, essa distinção se resolve na precedência da zona "íntima" sobre a zona "social", associada à natureza patriarcal da sociedade colonial.

  2. Distinção ancestral entre tipos distributivos rurais e urbanos, com primazia do rural sobre o urbano tanto na genealogia da derivação tipológica quanto, como observa Nestor Goulart [-@reis:1983quadro, p. 30], na preferência cotidiana pela morada rural sobre o pouso na cidade. Todavia, nos séculos XVIII e XIX observa-se intensa contaminação cruzada desses tipos, com a presença de plantas rurais solarengas (organizadas em torno de um ou mais salões) na cidade e de partidos de casas correntes urbanas (com corredores longitudinais) em moradas rurais [@martins:1978partido].

  3. Cozinha segregada da distribuição principal da morada, quando não da sua própria volumetria. Esse aspecto é por vezes apontado como indício de uma suposta influência indígena sobre a edilícia luso-brasileira. No entanto, a cozinha segregada é atestada já no vernáculo açoriano [@duarte:2020traditional, 91]. Neste, sinaliza a precedência da segurança contra incêndio sobre o aproveitamento do calor do fogo, pouco importante nos climas amenos do mundo atlântico português.

Transformações e influências

Apenas no final do século XIX é que se pode ver a marca inconfundível de transformações diacrônicas operadas pela renovação dos modos de morar e dos comportamentos domésticos. A principal será a adição longitudinal de uma zona de "serviço" às já existentes zonas "social" e "íntima" [@lemos:1976cozinhas]. Já a introdução do afastamento lateral no lote urbano, por esta mesma época, provoca uma compactação e reorganização da circulação interior da morada, com eventual (mas não necessário) reposicionamento das zonas "íntima" e "social" [@lemos:1999republica; @lemos:1989alvenaria].

Um argumento recorrente na historiografia da casa brasileira diz respeito ao papel que as influências estrangeiras à tradição portuguesa tiveram no desenvolvimento arquitetônico do século XIX. O papel transformador do ensino acadêmico pretensamente introduzido por Grandjean de Montigny [@morales:1941grandjean] tem sido questionado desde o último quartel do século XX. Esse questionamento consiste, sobretudo, em relativizar a adoção dos modelos franceses no Brasil imperial, em prol seja de um reequilíbrio com modelos italianos e britânicos, seja de uma defesa de uma autonomia do estilo classicista brasileiro --- por sinal, também em face da própria tradição de origem portuguesa [@sousa:1994arquitetura]. Nesta linha, os exemplares de casas senhoriais de nítido cariz francês são tidos por pouco consequentes no conjunto da produção solarenga no Brasil imperial.

Metodologia

Nomenclatura

A nomenclatura habitual dos tipos edilícios de base no Brasil não recobre todas as manifestações da morada tradicional e, pior ainda, não tem consistência descritiva. Designações sócio-históricas, como a de "casa bandeirista", coexistem com outras vagamente descritivas da morfologia das plantas, tais como "meia-morada" ou "morada-inteira". Ademais, essa nomenclatura é pouco relevante para se retroceder às matrizes tipológicas da casa luso-brasileira em Portugal continental ou nas ilhas atlânticas. Desde o Inquérito que a classificação hegemônica da arquitetura tradicional portuguesa opera por tipos regionais [por exemplo em @moutinho:1995arquitectura; @mascarenhas:2015arquitectura]. No entanto, trata-se de uma nomenclatura em grande medida estabilizada na bibliografia e da qual não será possível divergir significativamente.

O diagrama a seguir ([@fig:nomenclatura]) oferece tanto uma síntese dos processos tipológicos acima descritos, quanto uma proposta de nomenclatura padronizada, baseada sempre que possível nas convenções já consagradas na literatura. Essa nomenclatura será doravante usada neste artigo para se referir aos tipos cujos partidos ilustram o diagrama.

Tipologia e nomenclatura de casas portuguesas e luso-brasileiras, elaborado pelos autores{#fig:nomenclatura}

Recorte cronológico e geográfico

Esta pesquisa reuniu 86 plantas de casas urbanas ou quintas suburbanas datadas de meados do século XVIII ao início do século XX já publicadas na literatura ou disponíveis em acervos digitalizados. Nesse universo, predominam os exemplares de casas correntes, muitos deles sobrados, sobre os solares, por serem aqueles mais difundidos nos tecidos urbanos. O conjunto da amostra se concentra nos territórios goiano e mineiro, com alguns exemplares do litoral do Norte e Nordeste, bem como do estado do Rio de Janeiro. Trata-se de uma opção metodológica por contornar o contexto paulista, já amplamente estudado na literatura [@lemos:1999casa; @lemos:1989alvenaria], e os casos idiossincráticos das principais cidades do Nordeste [@oliveira:1986casas; @silva:1986arquitetura]. Além disso, o recorte geográfico fortalece a clareza do recorte cronológico, uma vez que toda a arquitetura do hinterland brasileiro é sabidamente posterior às primeiras décadas do século XVIII, e os exemplares litorâneos escolhidos têm trajetórias históricas bem documentadas.

Na maioria dos casos, a datação das edificações é aproximada ou incerta devido à carência de fontes documentais e à já mencionada insuficiência de critérios formais ou estilísticos. Por isso, onde não foi possível ordenar os exemplos analisados numa sequência cronológica simples, eles foram agrupados em quatro grandes períodos com base na datação oferecida pela literatura ou por atribuição arquivística:

  1. Casas atribuídas ao século XVIII por evidência documental;
  2. Casas de datação incerta, mas provavelmente datáveis ao século XVIII ou XIX por evidências indiretas (técnica construtiva, situação no tecido urbano, etc.);
  3. Casas atribuídas ao século XIX por evidência documental;
  4. Casas de datação incerta, mas provavelmente datáveis a finais do século XIX ou início do XX por evidências indiretas.

No século XVIII, a maioria das obras estudadas concentram-se na cidade de Goiás (30%) e na sua capitania (48%). Quase 70% são sobrados, sendo a maioria de 2 pavimentos. Em relação ao sistema construtivo, os que mais se destacaram foram o alicerce de pedras para a fundação, madeira e taipa de pilão para a estrutura e, adobe combinado com pau-a-pique para as vedações.

Entre os séculos XVIII e XIX, as moradias se concentram em Ouro Preto (42%), antiga Vila Rica, e nos estados de Goiás (45%) e Minas Gerais (42%). Em nenhum dos casos foi possível identificar os arquitetos responsáveis. A maior parte das casas são térreas (64%), podendo haver porão ou sótão. De acordo com as bibliografias estudadas, o sistema construtivo mais comum era baldrame de pedra para a fundação, estrutura em madeira e, vedação de adobe ou pau-a-pique.

No século XIX, predominam as casas na cidade do Rio de Janeiro (36%) e nos estados do Rio de Janeiro (36%) e Goiás (36%). Foi o período com mais informações sobre os arquitetos, dando um total de 32% de casas com os responsáveis identificados. A quantidade de sobrados e casas térreas ficou majoritariamente equilibrada, sendo a maioria de 1 pavimento. Sobre o sistema construtivo, os que mais estiveram presentes foram o baldrame e alicerce de pedras para a fundação, madeira para a estrutura e adobe para as vedações.

Já nos séculos XIX e XX, as edificações encontradas são distribuídas entre as cidades de Cavalcante, Monte Alegre e Taguatinga, todas no estado de Goiás. Em nenhum dos casos foi possível identificar os arquitetos responsáveis. A maior parte das casas são térreas (89%), podendo haver porão ou sótão. De acordo com as bibliografias estudadas, o sistema construtivo mais comum era baldrame e alicerce em pedras para a fundação e adobe para estrutura e vedação.

Procedimentos

Para a execução da pesquisa, foram selecionadas plantas, em sua maioria, de uso residencial e algumas de uso institucional. A qualificação inicial para a seleção se baseou nas informações obtidas e na qualidade gráfica das representações, garantindo que estariam dentro do período de XVIII ao início do XX, que fossem no Brasil e de possível reconhecimento visual.

Em seguida, as obras foram organizadas de forma cronológica e preenchidas as informações existentes de localização (endereço), cidade, estado, data, arquiteto, número de pavimentos, sistema construtivo (fundação, estrutura e vedação), orientação (implantação), tipo de janela (rasgada ou de peitoril) e número de cômodos. Foram feitas análises individuais e preenchidos os campos sobre a tipologia edilícia, principais características e as áreas mais quentes e mais frias de acordo com os mapas de visibilidade.

As representações em CAD, por seguirem desenhos encontrados nas bibliografias, que muitas vezes não continham escala ou não estavam em perfeitas condições, possuem natureza esquemática. Para melhor entendimento e análise, foram mapeadas as suas distribuições geográficas e a ocorrência no tempo das diferentes tipologias e das principais características encontradas.

As 86 plantas coletadas de diferentes regiões do Brasil, publicadas na bibliografia base deste trabalho, foram representadas por meio de desenho técnico por computador (CAD) e processadas usando a ferramenta de mapa de visibilidade no programa DepthMapX.

O estudo se aplica para o interior das edificações, incluindo as portas internas, mas não levando em consideração aberturas que permitissem a permeabilidade visual (janelas, varandas). Não foram aplicados os mobiliários e decorações para o estudo de movimentação no interior das casas, assim como não foram registradas as áreas de escada como possibilidade de troca entre pavimentos. Em alguns casos na bibliografia encontrada, aparecem pátios, jardins internos e quintais associados às atividades das moradias, entretanto, na maioria dos estudos de caso, somente foi apresentada a planta baixa, excluindo a área externa.

Foram utilizados os números de cômodos em cada construção como parâmetro de medição de tamanho, já que em vários casos não era possível realizar o cálculo da metragem quadrada. Nos exemplares de sobrados, quando havia mais de um pavimento, foi escolhido o pavimento que presumidamente seria o mais importante, onde ocorriam a maioria das atividades diárias em uma casa.

Deve-se ter em mente as modificações que algumas casas sofreram ao longo dos anos. A originalidade formal das casas não foi considerada um aspecto fundamental para as análises.

Resultados e discussão

Caracterização da amostra

As tipologias edilícias que estiveram mais presentes no século XVIII foram as de habitação de frente estreita (17%), morada inteira (17%) e casa nobre (17%). Predominavam as janelas rasgadas (65%) e casas de 6 a 15 cômodos (57%). A provável movimentação interna, medida pelo mapa de visibilidade, indica que em 40% das edificações a área mais quente, ou seja, morfologicamente mais acessível, se localizava ao centro, enquanto a área menos frequentada, mais fria, se concentrada nos fundos e nas laterais (17%).

Residência Lia do Carmo Lima, Taguatinga, Tocantins, c. 1902--1931. @vaz:2003casa{#fig:lia}

Em vários casos, a parte considerada como central é a parte posterior da volumetria principal, mas central se considerar os puxados de serviço ([@fig:lia]). Também devem ser destacadas as casas onde o centro se apresentou como uma área fria e as laterais e fachadas como áreas quentes.

O tipo da morada inteira foi a mais encontrada entre as casas de cronologia incerta (século XVIII ou XIX) (61%). As janelas mais comuns eram as de peitoril (89%) e habitações de 5 a 15 cômodos. Os mapas de visibilidade mostraram que o centro era a área mais frequentada nas casas (33%), entretanto o centro e fundos também foram marcados como as áreas mais frias (18%).

O tipo edilício mais significativo no século XIX foi a casa nobre (36%), seguido pela morada eclética (18%) e morada inteira (18%). Predominavam as janelas de peitoril (55%) e casas de 11 a 15 cômodos (36%). A provável movimentação interna, medida pelo mapa de visibilidade, indica que em 26% das edificações a área mais quente se localizava no centro, enquanto a área mais fria se concentrada nos fundos e nas laterais (13%) ou em toda a edificação (13%). Entretanto, vários casos possuem suas áreas quentes e frias em diferentes cômodos.

O tipo da morada inteira foi a mais encontrada entre os exemplares do século XIX tardio ou início do XX (50%), seguido pela casa bandeirista ou Palladiano (25%) e casa nobre (25%). Todas as casas possuíam janelas de peitoril e habitações de 6 a 10 cômodos (50%). Os mapas de visibilidade mostraram que o centro era a área mais frequentada nas casas (50%), enquanto a área menos frequentada se concentrada nos fundos e nas laterais (38%).

As janelas rasgadas passaram gradativamente para as janelas de peitoril, já que os novos sistemas estruturais permitiam um maior número de aberturas, não sendo mais necessário a execução do rasgo para aumentar a entrada de luz.

Transformação diacrônica e variantes sincrônicas

As casas brasileiras sofreram diversas adaptações ao longo do período estudado, como a especialização das atividades nos cômodos e a introdução de novos sistemas construtivos. Todavia, a transformação mais significativa é a introdução das moradas ecléticas, partido caracterizado pelo afastamento do volume principal das habitações em relação aos limites do lote e o acesso feito pela lateral das casas.

A deslocação da entrada principal da testada para o meio da elevação lateral, nas casas ecléticas, se sobrepõe num primeiro momento a plantas de morada tradicionais. Por isso, ela não altera de modo significativo a integração visual dos ambientes nem a direção do eixo integrador principal. Este eixo permanece longitudinal, dissipando-se do centro morfológico situado na "varanda" ou sala íntima principal da casa, ao longo do corredor longitudinal.

No entanto, a nova disposição da entrada abre caminho para reorganizar a configuração das distribuições, em tempo substituindo o corredor longitudinal por um hall compacto e amiúde transversal. Esta distribuição é atestada nos palacetes paulistanos de finais do século XIX e início do XX.

Não obstante essa transformação diacrônica nas distribuições da casa de morada tradicional para a casa eclética, a característica dominante do período que vai de meados do século XVIII ao início do XX é de variantes sincrônicas --- diferentes configurações de casas correntes e de solares que ocorrem de modo relativamente estável ao longo de todo o período. Essas variantes podem ser agrupadas em duas grandes séries tipológicas que correspondem às morfologias convencionalmente reconhecidas para a habitação tradicional luso-brasileira: as casas de morada, configuração por excelência urbana e de classe média, e as casas senhoriais, sedes de uma aristocracia (ou oligarquia) de cariz predominantemente rural.

Duas séries tipológicas

Os gráficos de visibilidade obtidos pelo processamento no programa DepthMapX podem ser agrupados em duas séries dominantes: aqueles onde o eixo integrador (zona quente do gráfico) é longitudinal com respeito ao percurso do usuário desde a testada até os fundos da casa, e aqueles onde há um ou mais eixos integradores transversais, com menor importância para a circulação longitudinal. A configuração longitudinal é encontrada em todos os exemplares da tipologia de casas de morada e também em alguns exemplares de casas senhoriais. Já a configuração transversal ocorre na maioria dos exemplares de tipologia solarenga.

As diferenças na integração espacial entre as casas correntes e as casas senhoriais são esperadas e confirmam os argumentos habitualmente avançados na bibliografia sobre a morada luso-brasileira, especialmente quanto aos papéis sócio-espaciais dos diferentes ambientes que compõem essas duas classes tipológicas. A reclusão da família patriarcal na discrição do lar é, assim, a tônica geral da espacialidade doméstica urbana [@alencastro:1997vida2]. Ela é evidenciada na elevada profundidade da varanda comunal que, apesar de ser o ambiente mais integrado da casa corrente, não é facilmente acessível desde o exterior. Pelo contrário, os tipos de casas senhoriais refletem, na sua morfologia senão no próprio modo de vida, o aparato de representação da aristocracia fundiária herdada do Antigo Regime: salões de grandes dimensões integrados em enfiadas transversais e facilmente acessíveis numa estrutura morfologicamente rasa.

Mesmo assim, na tipologia das casas senhoriais há uma maior variabilidade de configurações, especialmente no tocante ao modo de distribuição espacial. As conexões diretas entre salas são o modo predominante de distribuição, mas vários exemplares apresentam também corredores transversais ([@fig:joaquina]), especialmente onde a planta tem mais de dois ambientes na sua profundidade longitudinal. Algumas casas senhoriais apresentam, ainda, alas posteriores com corredor longitudinal.

Residência D. Joaquina, São Domingos Goiás, século XIX? @vaz:2003casa{#fig:joaquina}

Hibridização

No entanto, a cisão entre a tipologia das casas urbanas morfologicamente profundas e a das casas senhoriais acessíveis não é estanque: alguns exemplares realizam uma hibridização entre os dois esquemas. Como discutido acima, a arquitetura doméstica luso-brasileira se constitui enquanto síntese de processos tipológicos já consolidados no Portugal medieval, cruzando variantes sincrônicas de diferentes regiões. Para além dessa síntese, verifica-se também na arquitetura urbana do Brasil a junção das variantes rurais e urbanas resultantes dessa síntese.

A hibridização tipológica é um fenômeno reconhecido em contextos de crescente complexidade de soluções habitacionais, especialmente no âmbito das cidades latino-americanas da Idade Contemporânea [@corona:2000ensaio]. Na amostra de arquitetura urbana desta pesquisa, exemplares de características híbridas entre as tipologias da casa corrente e da casa senhorial são observados de duas formas distintas.

A primeira forma de hibridização, atestada desde meados do século XVIII, senão antes, parte da casa corrente urbana como tipo de substrato. Ela desdobra lateralmente enfiadas de salas quadradas ou alongadas. Esta configuração dava a essas casas de elite características de integração mais próximas às da casa senhorial, como eixos visuais quentes na direção transversal e mais próximos da testada ([@fig:princesa]).

Casa da Princesa, Pilar de Goiás, c. 1750. @silva:2022panorama{#fig:princesa}

A segunda forma de hibridização comparece com mais frequência no século XIX e faz o percurso inverso, tomando a casa senhorial como tipo de substrato. Este processo insere na configuração de salões da casa senhorial um eixo central formado por um vestíbulo eventualmente seguido de antessalas, fortalecendo a ligação longitudinal da testada ao salão ou pátio principal. Com isso, a integração transversal dominante é temperada por uma crescente integração longitudinal que aproxima essas casas senhoriais da tipologia de casas correntes.

Conclusão

Durante todo o período estudado, constatou-se a constância do centro morfológico das casas correntes e senhoriais. Na tipologia das casas correntes, as varandas voltadas para o quintal, os corredores longitudinais, assim como pátios internos, como as áreas mais quentes, ou seja, mais acessíveis. Na tipologia das casas senhoriais, os salões de recepção apresentam-se como o centro morfológico, que se expande transversalmente para outras salas de aparato posicionadas em enfiada.

Em ambas as séries tipológicas, as áreas mais frias, ou seja, menos acessíveis, se mantiveram nas áreas de puxados e laterais das casas. Mesmo os anexos e áreas de serviços serem os pontos menos acessíveis nas casas, percebeu-se que se localizavam relativamente próximos às áreas centrais. Foi confirmada a primazia da varanda íntima nas casas de morada ou do salão nos tipos solarengos, onde centro quente nas residências permaneceu constante entre os séculos XVIII e XIX.

As principais variantes observadas dizem respeito à introdução do afastamento lateral nas casas correntes, bem como à hibridização das duas séries tipológicas entre si. No entanto, o afastamento lateral, característico da arquitetura eclética de finais do século XIX, pouco afeta a integração espacial e a centralidade morfológica das casas correntes. Antes, o acesso direto à varanda desde o afastamento intensifica a centralidade desse ambiente na configuração doméstica. A alteração nesse caso é sobretudo sociológica, dando um caráter mais público ao que era o principal ambiente íntimo da casa de morada luso-brasileira.

Por outro lado, as hibridizações tipológicas alteram sensivelmente a integração visual dos tipos de casas correntes e senhoriais, transferindo, como era de se esperar, características morfológicas entre eles. Os tipos híbridos podem ser identificados com clareza como partindo de um substrato de casa corrente ou senhorial, adquirindo apenas de modo complementar as características do outro tipo.

Esta pesquisa concentrou-se em exemplares da arquitetura doméstica construídos no Brasil em meio urbano ou suburbano, isto é, casas isoladas porém afetadas por um tecido de crescimento urbano no seu entorno. De modo a obter um recorte cronológico mais nítido, privilegiou conjuntos urbanos nas regiões de mineração --- Minas Gerais e Goiás ---, onde não haveria construções anteriores a meados do século XVIII, bem como alguns exemplares litorâneos de trajetória bem documentada. A mesma análise poderá, com as devidas precauções, ser aplicada a casas em contexto inteiramente rural e expandido o recorte cronológico para períodos mais antigos da colonização, e por que não explorar com mais detalhe as transformações na configuração doméstica realizadas na primeira metade do século XX.

Referências